Blog

bola

Acesso à PrEP na Irlanda foi motivado por luta de soropositivo

Acesso à PrEP na Irlanda foi motivado por luta de soropositivo

Para Greg Owen, já era tarde demais. Quando se empenhou em tentar encontrar um medicamento preventivo novo – ainda não disponível no sistema de saúde britânico (NHS), que o impediria de contrair o vírus da aids, já havia sido infectado.

Ainda assim, ele e um amigo decidiram apostar em um ambicioso plano para ajudar milhares de outras pessoas a ter acesso ao medicamento. “Você sabe quando você faz uma coisa e sua vida inteira muda? Apertar o botão de enviar foi o momento que mudou minha vida”, recorda Owen, sobre o dia em que revelou no Facebook que era HIV positivo e que podia ter evitado a infecção se estivesse tomando o medicamento profilático que tanto queria.

Owen cresceu em Belfast, na Irlanda do Norte. Era o mais velho de uma família com seis filhos. Eram os anos 1980, época em que a Irlanda do Norte assistia a violentos conflitos sectários e em que Owen, como ele mesmo diz, era “muito gay”. Os anos se passaram. Em 2015, Owen trabalhava em bares e boates, e dormia em sofás na casa de amigos em Londres.

Foi quando Owen encontrou Alex Craddock. “Ele era fofo, um pouco atrevido. E eu tive uma quedinha por ele”, conta.

Craddock tinha voltado de Nova York e estava testando a PrEP (Profilaxia Pré-Exposição), uma pílula que combina dois medicamentos (tenofovir + entricitabina) que bloqueiam alguns “caminhos” que o HIV usa para infectar o organismo.

Se você toma PrEP diariamente e faz sexo com uma pessoa com HIV, a combinação é quase 100% efetiva para prevenir que você se torne HIV positivo, mesmo se não houve uso de camisinha na relação.

Há quem o tome dias antes e depois do ato sexual. Há quem o tome diariamente. Segundo o Ministério da Saúde, a PrEP começa a fazer efeito sete dias depois do uso do comprimido em casos de relação anal e 20 dias para relação vaginal.

Ela é indicada para pessoas que tenham maior chance de entrar em contato com o HIV, como grupos de risco – homens que transam com outros homens, transexuais e trabalhadores e trabalhadoras do sexo.

Owen queria muito um tratamento similar ao do amigo. “Eu estava tentando achar a PrEP, e Alex já estava usando o medicamento, que ele conseguira nos EUA”. Naquela época, o tratamento não estava disponível no serviço público de saúde do Reino Unido. No entanto, os diagnósticos de HIV para grupos de risco estavam crescendo. Um a cada oito homens gays em Londres têm HIV.

Antes de tomar a PrEP, a pessoa precisa se certificar que não foi infectada com o HIV. Owen teve acesso a uma pequena dose do medicamento e foi fazer o teste para saber se poderia adotar o método preventivo.

Ele não estava preocupado. Fazia testes para ISTs com regularidade. Mas dessa vez, o teste deu, pela primeira vez, o outro resultado: positivo para HIV.

“Foi como uma bomba”, recorda Owen, que se sentiu paralisado e sozinho, como se estivesse preso numa armadilha. “Eu via as pessoas passando e me senti como se estivesse numa bolha, como se algo estivesse me separando do resto do mundo”, relata.

Foi quando tomou a decisão que mudou sua vida e, provavelmente, as de milhares de outros homens gays. Ele decidiu revelar seu segredo. Postou no Facebook que era HIV positivo. Falou da PrEP, essa droga que poucos tinham ouvido falar mas que poderia ter evitado sua contaminação.

A primeira reação das pessoas foi de choque pela revelação, mas logo começaram a perguntar o que era a PrEP e por que ela impediria que ele se contaminasse com o HIV. Owen respondia explicando como funcionava a profilaxia. E a próxima pergunta, inevitavelmente, era: como conseguir a PrEP?

Diante do interesse das pessoas, Owen e Craddock decidiram que algo precisaria ser feito. Craddock lembra que, na época, eles pensaram que nem precisavam do governo para ajudar as pessoas a encomendar o remédio online.

Do quarto de Craddock, começaram a criar um site de internet, com todas as informações necessárias e um link: “clique aqui para comprar”. Segundo Owen, o link levava diretamente a sites que vendiam o remédio online. Era uma ideia radical: “Não vou esperar para que o NHS venha me salvar”, recorda Craddock. “Quero a PrEP agora e é assim que vou consegui-la”.

O site ganhou o nome “Quero Prep Agora” e foi lançado em outubro de 2015. Em 24 horas, teve 400 acessos e, a partir daí, cresceu rapidamente. E também atraiu a atenção da comunidade médica. Mags Portman, consultora do NHS para assuntos ligados ao HIV e a saúde sexual, entrou em contato com Owen para encontrá-lo. Will Nutland, ativista de outro site que também trazia informações sobre a PrEP, acabou se juntando ao projeto de Owen e Cradddock.

Nutland acabou servindo de cobaia. Ele tomava PrEP de distribuidores novos e fazia exames na clínica da consultora Mags Portman. Ele testou mais de 300 lotes e nenhum parecia ser falso.

Ao mesmo tempo, o Conselho de Pesquisa Médica do Reino Unido deu início a um estudo comparando resultados de usuários e não usuários do medicamento preventivo.

O resultado foi tão evidente – queda de 86% em novas contaminações por HIV entre os usuários da PrEP – que a pesquisa foi interrompida precocemente e o medicamento oferecido também aos que não o estavam tomando.

No final de 2014, o serviço de saúde britânico (NHS) deu início a trâmites para decidir se a PrEP deveria ser disponibilizada. O tempo passou, mas nenhuma decisão havia sido tomada até 2016.

“Era muito difícil e frustrante, já que os médicos sabiam da existência dessa ferramenta preventiva, mas não podiam ter acesso a ela, nem prescrevê-la”, afirma a consultora Mags Portman, dizendo que muitos médicos acompanhavam pacientes em situação de risco e que acabavam infectados.

Em determinando momento, o NHS decidiu dizer não ao uso do medicamento. “Fiquei chocada”, diz Sheena McCormack, professora de epidemiologia clínica, que conduziu o estudo do Conselho de Pesquisa Médica. Para Portland, a decisão foi “absolutamente horrível”.

Assim, a ideia que começou no quarto de Owen foi parar na Suprema Corte do Reino Unido. Uma conhecida entidade beneficente, o National Aids Trust, foi à Justiça para exigir que NHS considerasse a PrEP seguindo as mesmas normas usadas para avaliar qualquer novo medicamento.

O NHS, que enfrentava uma de suas piores crises orçamentárias, argumentava que, legalmente, não era responsável por custear a prevenção – e que isso seria responsabilidade de governos locais.

O caso acabou expondo outra coisa – a visão de parte da sociedade britânica de que homens gays deveriam ser responsáveis pela própria sorte. O jornalista Andrew Pierce, que é gay, se colocou contra a oferta do medicamento pelo governo.

“Não acho que o NHS possa bancar 450 libras (R$ 2.300) por mês para um homossexual”, disse ele. “É um absurdo, por que o contribuinte deveria subsidiar uma vida sexual imprudente?”, questionou o jornalista.

Para Owen, “homens gays têm o direito a viver sem medo, sem culpa e a ter sexo sem doença”. “Estamos, em última instância, condicionados a acreditar que o amor, particularmente o sexo entre dois homens, sempre tem que ter um preço a se pagar. E não é para ser assim.”

No tribunal, não se sustentou o argumento do sistema de saúde britânico para não oferecer a PrEP. Se o NHS oferecia estatinas a pessoas saudáveis para prevenir problemas como o colesterol, poderia oferecer outras drogas preventivas.

A decisão da Justiça foi favorável ao National Aids Trust. O NHS recorreu, mas, em novembro de 2016, perdeu novamente e foi obrigado a assumir a distribuição da PrEP.

Owen está de volta à Irlanda do Norte, onde trabalha num bar. “Eu literalmente chorei. Estava servindo cerveja para um garoto que provavelmente pensou que eu fiquei louco”, disse, contando como reagiu ao saber da decisão judicial.

O que aconteceu no Reino desde então

No ano passado, oito clínicas em Londres e outras várias fora da capital inglesa fizeram parte de um teste para oferecer PrEP.

Além disso, muitos homens podem comprar o próprio medicamento, em especial porque o tratamento foi amplamente divulgado. Em agosto do ano passado, o NHS anunciou que iria oferecer a PrEP a 10 mil pessoas.

No País de Gales, o medicamento preventivo está disponível em clínicas escolhidas pelo NHS. Mas ainda não há PrEP na Irlanda do Norte. No Reino Unido, a Escócia é a única região a oferecer o medicamento pelo sistema nacional de saúde.

No Reino Unido, pela primeira vez em anos recentes, o diagnóstico de HIV entre homens gays está caindo. Entre 2015 e 2016, caiu em 20%. Em algumas clínicas de Londres, a queda chegou a 40%.

Os mais críticos dizem que a PrEP pode prejudicar as campanhas por sexo seguro. Citam um estudo conduzido na Austrália durante quatro anos e publicado na revista acadêmica Lancet, sugerindo que enquanto o uso de PrEP aumenta, o de camisinha cai. Além disso, homens que não usam o medicamento também estão usando menos camisinha, de acordo com o estudo.

Pesquisadores da universidade britânica University College London (UCL) avaliaram o custo benefício da PrEP . Eles argumentam que o medicamente traria prejuízo ao NHS nos primeiros 40 anos, mas que, a partir daí, traria benefícios econômicos. Após 80 anos, ela permitiria o país economizar 1 bilhão de libras.

Como é no Brasil

No Brasil, segundo o site do Ministério da Saúde, a Profilaxia Pré-Exposição ao HIV está disponível em 36 serviços do Sistema Único de Saúde em 22 cidades brasileiras. Os serviços começaram a receber o medicamento em dezembro do ano passado.

O investimento inicial no Brasil foi estimado em R$ 8,6 milhões. É o custo de 3,6 milhões de comprimidos, para atender à demanda pelo período de um ano, aproximadamente.

Ainda segundo o Ministério de Saúde brasileiro, a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda, desde 2012, a oferta da PrEP, que já é disponibilizada nas redes pública de saúde da França e da África do Sul. Já nos Estados Unidos, Bélgica, Escócia, Peru e Canadá, é comercializada na rede privada.

Owen sempre chora quando se lembra do que precisou fazer e passar até ver o medicamento sendo oferecido, ainda que de forma restrita, no sistema de saúde.

Ele se lembra de uma ligação específica que o fez chorar muito. A epidemiologista Sheena McCormack estava na linha, era o Natal de 2016, poucas semanas depois da decisão judicial em que o NHS saiu derrotado.

“Eu quero que você pense nas pessoas, nas milhares de pessoas que estão andando por aí, HIV negativas, por causa de algo que você fez”, disse McCormack.

Olhando para trás, Owen diz que não havia um grande plano, a ideia era ajudar pelo menos uma pessoa. Mas ele acabou ajudando milhares.

Fonte: Agência Aids